A opção de não se vacinar pode ou não resultar no desligamento do trabalhador por justa causa?
18 de março de 2021
Anderson Angelo Vianna da Costa – Advogado, sócio do escritório Vilela Vianna Advocacia e Consultoria, professor em diversas instituições de pós-graduação, lecionando em Direito Previdenciário. Autor de diversos artigos e do livro “Gestão dos Afastamentos e dos Benefícios Previdenciários”, 2a edição pela Ed. Lujur.
Eduardo Alves Borin de Oliveira, Advogado e Consultor, integrante do escritório Vilela Vianna Advocacia e Consultoria, pós-graduando em Direito Civil e Processual Civil
Introdução
Em diversos meios de comunicação, incluindo portais jurídicos especializados, circulam notícias e opiniões de diversos profissionais do Direito sobre a obrigatoriedade do trabalhador se submeter à vacinação contra o vírus causador do COVID-19, bem como da possibilidade de eventual recusa pelo trabalhador permitir seu desligamento por justa causa, além de outras implicações na gestão de pessoal e de saúde e segurança do trabalho.
Na maioria dos casos lidos e analisados, essa discussão vem sendo travada à luz de uma equivocada interpretação sobre a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal de que a vacinação compulsória contra COVID-19 seria constitucional[1].
Contribuíram também para a celeuma diversas publicações emanadas do Ministério Público do Trabalho, que trouxe alguns apontamentos obscuros sobre a natureza acidentária dos casos de acometimento dessa enfermidade, bem como orientações contraditórias àquelas oriundas da Secretaria do Trabalho, indicando às empresas procedimentos que não encontram amparo legal, inclusive.
Sendo assim, por meio do presente artigo, vamos trazer nossa intepretação, com os respectivos fundamentos lógicos e legais que nos levam às seguintes conclusões, que desde já adiantamos:
- a vacinação do empregado não pode ser compulsória;
- a vacina não pode ser considerada um EPI;
- a vacinação não pode ser incluída no PCMSO; e
- a recusa do trabalhador à vacinação não pode resultar em rescisão por justa causa.
1 – O STF e a vacinação compulsória
Entre nós a discussão sobre a vacinação obrigatória é tema de acalorado debate desde o século XX. A chamada revolta da vacina, insurreição popular diante da obrigatoriedade da vacinação contra a varíola, com a edição da Lei n° 1.261/1904, rendeu a célebre frase do jurista baiano Rui Barbosa “A lei da vacina obrigatória é uma lei morta. (…) Contrário era e continuo a ser à obrigação legal da vacina. (…) Assim como o direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme.[2]“
Rui Barbosa era contrário à vacina, pois acreditava que ela conduzia o próprio vírus “em cuja influência existem os mais bem fundados receios de que seja condutora da moléstia, ou da morte”[3].
Consta no portal eletrônico da Fundação Oswald Cruz, sanitarista e principal articulador para criação da norma, que a obrigatoriedade da vacina era requisito para contratos de trabalho, matrículas escolares, emissão de certidões e autorizações para viagem[4]. Assim, a norma possuía um caráter compulsório para a sociedade da época.
Todavia, boa parte da população demonstrou descontentamento com a norma, principalmente pela vacinação forçada por parte do Estado. Dessa conclusão, boa parte da população aderiu ao motim desencadeado nas ruas do Rio de Janeiro, à época capital da República, o qual resultou em 945 prisões, 461 deportados, 110 feridos e 30 mortos, situação que obrigou o então Presidente Rodrigues Alves a desistir da vacinação obrigatória.[5]
Um século depois, o tema sobre a obrigatoriedade da vacinação chegou ao Supremo Tribunal Federal, mas com balizas distintas, isto é, a Corte foi provocada recentemente sobre o direito à recusa à imunização por convicções filosóficas religiosas no Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1267879[6], e o pedido de declaração de inconstitucionalidade ou interpretação conforme à Constituição do art. 3º, III, “d”, Lei nº 13.979/2020 nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586[7] e 6587[8].
O movimento antivacinação, amparado no direito à recusa à imunização por convicções filosóficas religiosas, foi inserido no relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS) como um dos dez maiores riscos à saúde mundial, considerando a diminuição na adesão de campanhas de vacinação um retrocesso no combate a doenças imunopreveníveis[9].
Com base em tal distinção, no presente caso nos interessa a ratio decidendi quanto a vacinação compulsória contra a COVID-19 e sua implicação nas relações de trabalho.
As Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587 foram propostas pelo Partido Democrático Trabalhista – PTD e Partido Trabalhista Brasileiro – PTB, respectivamente. A primeira pretendia a interpretação conforme à Constituição ao art. 3º, III, “d”, Lei nº 13.979/2020, enquanto a ADI 6587 buscava a declaração de inconstitucionalidade da norma.
Em suma, o dispositivo objetado esclarece que as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, a determinação de realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas, visando assim o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do novo coronavírus. Confira-se:
Lei n° 13.979/2020
(…)
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas:
III – determinação de realização compulsória de:
(…)
d) vacinação e outras medidas profiláticas.
À vista disso, é de se observar que outros diplomas normativos já regulam a possibilidade da vacinação compulsória entre nós, mas nunca a vacinação forçada. Nesse sentido, é o teor do art. 3° da Lei nº 6.259/75:
Lei nº 6.259/75
Art 3º Cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório.
Parágrafo único. As vacinações obrigatórias serão praticadas de modo sistemático e gratuito pelos órgãos e entidades públicas, bem como pelas entidades privadas, subvencionadas pelos Governos Federal, Estaduais e Municipais, em todo o território nacional. (Grifamos).
Nesse prosseguir, os arts. 4º e 5º da Portaria 597/2004 do Ministério da Saúde, esclarecem as sanções (caráter compulsório) a serem aplicadas para as pessoas que recusem a vacinação, conforme:
Portaria Nº 597, de 08 de Abril de 2004
Art. 4º O cumprimento da obrigatoriedade das vacinações será comprovado por meio de atestado de vacinação a ser emitido pelos serviços públicos de saúde ou por médicos em exercício de atividades privadas, devidamente credenciadas pela autoridade de saúde competente, conforme disposto no art. 5º da Lei 6.529/75.
Art. 5º Deverá ser concedido prazo de 60 (sessenta) dias para apresentação do atestado de vacinação, nos casos em que ocorrer a inexistência deste ou quando forem apresentados de forma desatualizada.
§ 1º Para efeito de pagamento de salário-família será exigida do segurado a apresentação dos atestados de vacinação obrigatórias estabelecidas nos Anexos I, II e III desta Portaria.
§ 2º Para efeito de matrícula em creches, pré-escola, ensino fundamental, ensino médio e universidade o comprovante de vacinação deverá ser obrigatório, atualizado de acordo com o calendário e faixa etária estabelecidos nos Anexos I, II e III desta Portaria.
§ 3º Para efeito de Alistamento Militar será obrigatória apresentação de comprovante de vacinação atualizado.
§ 4º Para efeito de recebimento de benefícios sociais concedidos pelo Governo, deverá ser apresentado comprovante de vacinação, atualizado de acordo com o calendário e faixa etária estabelecidos nos Anexos I, II e III desta Portaria.
§ 5º Para efeito de contratação trabalhista, as instituições públicas e privadas deverão exigir a apresentação do comprovante de vacinação, atualizado de acordo com o calendário e faixa etária estabelecidos nos Anexos I, II e III desta Portaria
Desse modo, é de se observar que a compulsoriedade da vacinação não corresponde em nenhum invencionismo por parte do Supremo Tribunal Federal, mas sim uma adequação dos fatos (enfrentamento à pandemia causada pela Covid-19) e as normas de direito pátrio existentes (Lei nº 6.259/75 c/c Portaria 597/2004 do Ministério da Saúde).
Assim, no julgamento ocorrido em 17/12/2020, o plenário do Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente procedente as Ações Diretas de Inconstitucionalidade, fixando a seguinte tese:
(I) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, facultada a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade; e sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente.
De plano, é necessário observar que a obrigatoriedade da vacinação não contempla a imunização forçada, porquanto é levada a efeito por meio de medidas indiretas (v.g., multa, impedimento de frequentar determinados lugares, fazer matrícula em escola). Assim, vacinação obrigatória e/ou compulsória não pode ser entendida como sinônimo de vacinação forçada.
Portanto, ao declarar que a vacinação ocorrerá de forma compulsória, o STF esclareceu que cabe ao Poder Público a adoção de medidas restritivas previstas em lei (art. 5º, II da CRFB/88 – princípio da reserva legal) como consequências aos indivíduos que não aderirem ao plano nacional de vacinação, principalmente, com a imposição de restrição ao pleno exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares.
Ainda, no plano da competência normativa, o Supremo também entendeu que as limitações podem ser adotadas pela União, Estados, Distrito Federal e pelos Municípios, desde que respeitadas as respectivas esferas de competência. Logo, por exclusão, qualquer regulação sobre Direito do Trabalho, incidência de justa causa ao colaborador que se recusar à vacina, é de competência exclusiva da União, por força do art. 22, I, da CRFB/88.
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; (Grifamos).
Assim, a (im)possibilidade de demissão por justa causa ao trabalhador que recusa à vacina, hipótese que não foi debatida em nenhum momento pelo STF, não pode ser concretizada por ato particular do empregador, sem que exista previsão legal para tanto. E, não poderia ser diferente, pois o Decreto-lei n° 5.452/43 – CLT –, recepcionada pela CRFB/88 com status de Lei Ordinária, possui rol taxativo (art. 482, CLT) quanto as hipóteses de rescisão por justa causa.
Nessa lógica, a decisão do STF é acertada ao estabelecer a compulsoriedade da vacinação e suas consequências (restritivas) em casos de recusa, pois em que pese a vacinação e a criação da chamada imunidade de rebanho seja medida eficaz no combate ao novo coronavírus, a vacinação obrigatória, ao compelir o direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do corpo humano, fere a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais do indivíduo.
O cerne particular nessa discussão entre a obrigatoriedade ou não da vacinação, consiste justamente no direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do indivíduo. O argumento central do STF ao permitir medidas restritivas para aqueles que recusam a vacina, busca garantir que o Poder Público adote ações restritivas para os indivíduos contrários à vacina, mas também busca proteger a integridade física desses.
Com esse entendimento, o STF reforça a proteção a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, pois o critério científico sobre eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes são circunstâncias que devem ser observadas, sendo compreensivo o temor popular de possíveis consequências adversas ao uso da vacina. Os autores entendem que a vacinação deve ser compulsória, que o Poder Público deve vacinar o maior número de pessoas possíveis, mas também entendem que a vacinação não pode ser uma imposição Estatal.
A propósito, esse ponto pode ser debatido mediante a correlação entre a vacinação compulsória e o uso obrigatório de máscaras. A Lei 13.979/2020, que dispõe sobre a obrigatoriedade do uso de máscaras de proteção individual para circulação em espaços públicos e privados acessíveis ao público, vias e transportes públicos durante a vigência das medidas para enfrentamento da pandemia da Covid-19, recebeu veto do Presidente da República, especificamente quanto ao seu uso em estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, estabelecimentos de ensino e demais locais fechados em que haja reunião de pessoas (inciso III do novo artigo 3º-A, da Lei 13.979/2020)[10].
Art. 3º-A. É obrigatório manter boca e nariz cobertos por máscara de proteção individual, conforme a legislação sanitária e na forma de regulamentação estabelecida pelo Poder Executivo federal, para circulação em espaços públicos e privados acessíveis ao público, em vias públicas e em transportes públicos coletivos, bem como em:
(…)
III – estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos, estabelecimentos de ensino e demais locais fechados em que haja reunião de pessoas
Todavia, o ministro Gilmar Mendes[11], do Supremo Tribunal Federal, concedeu liminar nas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs 714, 715 e 718), pois entendeu que “o direito à saúde há de se efetivar mediante ações específicas (dimensão individual) e mediante amplas políticas públicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos (dimensão coletiva).”
Observem que a correlação entre uso obrigatório de máscara (como medida de proteção individual) e a não obrigatoriedade de adesão ao programa nacional de imunização, guarda relação próxima com direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do indivíduo. Isto é: o uso obrigatório de máscara não fere a integridade física do indivíduo, mas sim reduz o risco de contágio e concretiza medida restritiva de acesso a lugares públicos (caráter compulsório) quando o seu uso for obrigatório, tal como fixado pelo STF.
A obrigatoriedade do uso de máscara possui previsão legal, referendada pelo Supremo Tribunal Federal (ADPFs 714, 715 e 718), sendo que a recusa pelo trabalhador poderá resultar em advertência, todavia, persistindo o comportamento faltoso, é possível sua suspensão e, consequentemente, demissão por justa causa, nos termos do art. 482, “h” da CLT.
Nesse prosseguir, o relator das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587, ministro Ricardo Lewandowski, ponderou que a obrigatoriedade da vacina é constitucional, todavia, a vacinação sem o expresso consentimento padece de inconstitucionalidade, conforme[12]:
Dos dispositivos constitucionais e precedentes acima citados, forçoso é concluir que a obrigatoriedade a que se refere a legislação sanitária brasileira quanto a determinadas vacinas não pode contemplar quaisquer medidas invasivas, aflitivas ou coativas, em decorrência direta do direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do corpo humano, bem como das demais garantias antes mencionadas. Em outras palavras, afigura-se flagrantemente inconstitucional toda determinação legal, regulamentar ou administrativa no sentido de implementar a vacinação forçada das pessoas, quer dizer, sem o seu expresso consentimento.
Dito isso, é bastante forçosa a interpretação de que a recusa à vacina pelo trabalhador pode levar à demissão por justa causa, pois o que seria a obrigatoriedade senão uma medida coercitiva capaz de desencadear a aflição pela possível perda do emprego em caso de recusa.
Outro ponto a ser observado é a distribuição de forma universal e gratuita da vacina contra a Covid-19, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal. Em outras palavras, qualquer discussão sobre (im)possibilidade de demissão pela recusa à vacina, somente poderá ser aventada se o plano nacional de imunização atender a totalidade dos brasileiros, pois do contrário a dispensa seria discriminatória.
Desta forma, podemos concluir que a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587 não fornece margem interpretativa para permitir a demissão por justa causa ao trabalhador que recusa à vacina.
Assentadas as considerações acima, passaremos a outras ponderações que afastam a hipótese do desligamento por justa causa do empregado que se recusar à vacinação.
2 – COVID-19 não é enfermidade laborativa
Muita discussão foi travada desde o agravamento da pandemia em nosso país, tendo sido publicados diversos textos normativos, provisórios ou orientativos, estabelecendo que os casos de COVID verificados entre os trabalhadores empregados poderiam ou deveriam ser considerados como enfermidades laborativas como se não houvesse em nosso ordenamento vigente a previsão normativa para definir o quadro.
Se observarmos o texto da Lei 8.213/91, em seus artigos 19 a 23, encontraremos ali a definição do que seria acidente do trabalho, os casos e ocorrências que poderiam ser a ele equiparados, assim como também quais eventos não poderiam ser considerados como acidentários.
Para se caracterizar um acidente do trabalho, há que se verificarem 3 requisitos previstos no artigo 19 dessa Lei 8.213/91. Confira-se:
Art. 19 – Acidente do trabalho é o que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço de empresa ou de empregador doméstico ou pelo exercício do trabalho dos segurados referidos no inciso VII do art. 11 desta Lei, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte ou a perda ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho. (…)”
Importa, sobretudo, o primeiro requisito: a ocorrência deve ter ocorrido pelo exercício do trabalho, ou seja: o trabalho deve ser a causa ou, pelo menos, ter o trabalho contribuído para seu agravamento:
“Art. 20 – Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:
I – doença profissional, assim entendida a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade e constante da respectiva relação elaborada pelo Ministério do Trabalho e da Previdência Social;
II – doença do trabalho, assim entendida a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.
No caso de qualquer enfermidade, a definição do nexo laborativo deve ser sempre decorrer de investigação, estando as hipóteses bem delineadas no Decreto 3.048/99 que traz, inclusive, a relação de enfermidades que são passíveis de serem consideradas como laborativas, numa correlação com os possíveis agentes etiológicos ou fatores de risco que poderiam ter-lhes feito surgir.
Tratamos aqui das Listas A e B do Anexo II do Decreto 3.048/99 utilizadas na aplicação do Nexo Profissional quando da caracterização acidentária de uma determinada enfermidade pela perícia médica previdenciária. Podemos observar ali a presença dos agentes biológicos como passíveis de serem considerados como causadores laborativos das enfermidades incapacitantes dos trabalhadores. Confira-se um trecho dessas Listas A e B:
ANEXO II AGENTES PATOGÊNICOS CAUSADORES DE DOENÇAS PROFISSIONAIS OU DO TRABALHO, CONFORME PREVISTO NO ART. 20 DA LEI Nº 8.213, DE 1991 | |
BIOLÓGICOS | |
XXV – MICROORGANISMOS E PARASITAS INFECCIOSOS VIVOS E SEUS PRODUTOS TÓXICOS | |
Mycobacteria, vírus; outros organismos responsáveis por doenças transmissíveis. | Hospital; laboratórios e outros ambientes envolvidos no tratamento de doenças transmissíveis. |
LISTA A AGENTES OU FATORES DE RISCO DE NATUREZA OCUPACIONAL RELACIONADOS COM A ETIOLOGIA DE DOENÇAS PROFISSIONAIS E DE OUTRAS DOENÇAS RELACIONADAS COM O TRABALHO | |
XXV – Microorganismos e parasitas infecciosos vivos e seus produtos tóxicos (exposição ocupacional ao agente e/ou transmissor da doença, em profissões e/ou condições de trabalho especificadas) | Tuberculose (A15-A19.-) Hepatites Virais (B15-B19.-) Doença pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) (B20-B24.-) |
LISTA B DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS RELACIONADAS COM O TRABALHO (Grupo I da CID-10) | |
IX – Hepatites Virais (B15-B19) | Exposição ocupacional ao Vírus da Hepatite A (HAV); Vírus da Hepatite B (HBV); Vírus da Hepatite C (HCV); Vírus da Hepatite D (HDV); Vírus da Hepatite E (HEV), em trabalhos envolvendo manipulação, acondicionamento ou emprego de sangue humano ou de seus derivados; trabalho com “águas usadas” e esgotos; trabalhos em contato com materiais provenientes de doentes ou objetos contaminados por eles. (Z57.8) (Quadro XXV) |
X – Doença pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) (B20-B24) | Exposição ocupacional ao Vírus da Imuno-deficiência Humana (HIV), principalmente em trabalhadores da saúde, em decorrência de acidentes pérfuro-cortantes com agulhas ou material cirúrgico contaminado, e na manipulação, acondicionamento ou emprego de sangue ou de seus derivados, e contato com materiais provenientes de pacientes infectados. (Z57.8) (Quadro XXV) |
No mesmo sentido, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em sua Lista de Doenças Ocupacionais, permite o estabelecimento do nexo causal entre o agente biológico e a atividade laborativa, mas igualmente exigindo a comprovação de um vínculo entre eles, como registra o subitem 1.3.9 (tradução livre, com destaque nosso)[13]:
“1.3.9. Doenças causadas por outros agentes biológicos no trabalho, não mencionados nos itens anteriores, em que um vínculo direto é estabelecido cientificamente ou determinado por métodos adequados às condições e práticas nacionais, entre a exposição a esses agentes biológicos, decorrente de atividades de trabalho, e a(s) doença(s) contraída(s) pelo trabalhador.”
Logo, nosso ordenamento já é suficiente para nortear os casos de acometimento das enfermidades decorrentes dos riscos biológicos, sobretudo se analisarmos o parágrafo 1º do Artigo 20 da Lei 8.213/91, que estabelece os casos que não poderão ser considerados como laborativos. Vejamos:
Lei 8.213/91
Art. 20 – Consideram-se acidente do trabalho, nos termos do artigo anterior, as seguintes entidades mórbidas:
(…)
§ 1º- Não são consideradas como doença do trabalho:
a) a doença degenerativa;
b) a inerente a grupo etário;
c) a que não produza incapacidade laborativa;
d) a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.
(…).
Como se vê acima, a Lei deixou claro que os casos de endemia não serão considerados como laborativos, repetindo uma afirmativa que surgiu de forma expressa no longínquo Decreto 24.637, de 1934[14], sendo essa a regra justamente por não ser possível comprovar o nexo causal.
Entretanto, o texto da Lei trata dos casos endêmicos, o que poderia suscitar a precipitada conclusão de que endemia e pandemia teriam conceitos diferentes e que, por tal razão, a pandemia poderia ser considerada como laborativa.
Mas, ao que parece, no presente momento, essa possível divergência já estaria superada pelo entendimento comum de que para o legislador, a endemia tratada na norma se referia à ocorrência disseminada e sem causa imediata de uma enfermidade numa determinada localidade ou região, durante um período, tornando a população vulnerável ao acometimento da enfermidade. E tais características estão presentes também no caso de pandemia, o que torna possível elastecer aquele alínea d do parágrafo 1º da Lei 8.213/91 para os casos de endêmicos, epidêmicos e pandêmicos, uma vez que nos três casos se verificam uma maior exposição da população ao agente biológico causador da enfermidade, bem como as mesmas possibilidades de contágio para endemia, pandemia ou epidemia, razão pela qual se pode e se deve considerar os casos de pandemia do COVID-19 como não laborativa, nos exatos termos aplicados para os casos de endemia, sendo necessária a comprovação de queuma eventual contaminação seja “resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.”
Neste sentido, se analisarmos o art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, bem como no art. 2º da Lei 9.784/99, veremos que deve ser aplicada a interpretação que leve em considerado a finalidade norma, levando-nos a aplicar a interpretação teleológica:
“LIDB, art. 5o – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”
“Lei 9.784/99, art. 2º – A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.
(…)
XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.
Por fim, dias após uma infeliz publicação do Ministério Público do Trabalho (Nota Técnica GT COVI-19 nº 20/2020) a Secretaria de trabalho e Previdência publicou sua Nota SEI 96.376/2020/ME, esclarecendo finalmente os casos de COVID-19 deveriam ser analisados à luz da Lei 8.213/91/91, afastando a hipótese de caracterização presumida do nexo de causalidade.
Se a COVID-19 não é uma enfermidade laborativa, não haverá para as empresas consequências maiores no caso de seu empregado ficar acometido dessa enfermidade.
2.1 – Da não emissão de CAT em casos de COVID
Como dito no início deste texto, vários artigos e notícias têm trazido posicionamentos sobre a obrigatoriedade da vacinação, da possibilidade de rescisão por justa causa dos trabalhadores que se recusarem à vacinação, bem como a possibilidade de se considerar a vacina como um EPI (Equipamento de Proteção Individual).
Uma dessas publicações que fomentaram a discussão foi a Nota Técnica GT COVID-19 nº 20/2020, que trouxe em seu item 7 a necessidade de emissão de CAT por parte do empregador que se deparasse com um quadro de COVID-19. Vejamos:
7. DEVERÃO os médicos do trabalho, sendo constatado, por meio dos testes, a confirmação do diagnóstico de COVID-19, ou ainda que o teste consigne resultado “não detectável” para o novo coronavírus, mas haja suspeita em virtude de contato no ambiente de trabalho, mesmo sem sintomatologia, solicitar à empresa a emissão da Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT) dos casos confirmados e suspeitos (art. 169 da CLT); indicar o afastamento do(a) trabalhador(a) e orientar o empregador quanto à necessidade de adoção de medidas de controle no ambiente de trabalho, utilizando-se do instrumental clínico-epidemiológico para identificar a forma de contágio e proceder à adoção de medidas mais eficazes de prevenção (NR7, itens 7.2.2 e 7.4.8).
Ora, a sugestão do MPT para emissão da CAT não encontra amparo na Lei 8.213/91, uma vez que tais enfermidades não são presumidamente laborativas, assim como não é pertinente a caracterização acidentária quando não houver incapacidade laborativa, o que afasta a obrigatoriedade da emissão de CAT nos casos assintomáticos.
A empresa somente deverá emitir CAT quando houver a comprovação de que o adoecimento em grau incapacitante teve origem no ambiente laborativo ou em decorrência da atividade profissional, os termos da Lei 8.213/91, em seus já citados artigos 19, 20 e 23. Isso não significa que, ante a constatação de um caso, não deva tomar todas as medidas para afastar a proliferação dessa enfermidade.
2.2 – Das medidas preventivas por parte das empresas, dos riscos ambientais do trabalho, da inclusão no PCMSO e da vacinação como EPI
Ainda que possa faltar clareza neste sentido, as normas trabalhistas relativas à segurança e medicina do trabalho versam sobre o ambiente laborativo e sobre os riscos à saúde e à vida presentes no local de trabalho ou que se revelem presentes no exercício da atividade empresária, sendo o que se verifica, por exemplo, nos seguintes artigos da CLT e das Normas Regulamentadoras 7 e 9 abaixo transcritos, com nossos destaques:
NR 7 – Programa de Controle Médico e Saúde Ocupacional
7.2.3. O PCMSO deverá ter caráter de prevenção, rastreamento e diagnóstico precoce dos agravos à saúde relacionados ao trabalho, inclusive de natureza subclínica, além da constatação da existência de casos de doenças profissionais ou danos irreversíveis à saúde dos trabalhadores.
NR 9 – Avaliação e Controle das Exposições Ocupacionais a Agentes Físicos, Químicos E Biológicos
9.1.1 Esta Norma Regulamentadora – NR estabelece a obrigatoriedade da elaboração e implementação, por parte de todos os empregadores e instituições que admitam trabalhadores como empregados, do Programa de Prevenção de Riscos Ambientais – PPRA, visando à preservação da saúde e da integridade dos trabalhadores, através da antecipação, reconhecimento, avaliação e consequente controle da ocorrência de riscos ambientais existentes ou que venham a existir no ambiente de trabalho, tendo em consideração a proteção do meio ambiente e dos recursos naturais.
CLT
Art. 169 – Será obrigatória a notificação das doenças profissionais e das produzidas em virtude de condições especiais de trabalho, comprovadas ou objeto de suspeita, de conformidade com as instruções expedidas pelo Ministério do Trabalho.
Vejamos com mais vagar o conceito de risco ambiental do trabalho, trazido na NR 9:
9.1.5 Para efeito desta NR, consideram-se riscos ambientais os agentes físicos, químicos e biológicos existentes nos ambientes de trabalho que, em função de sua natureza, concentração ou intensidade e tempo de exposição, são capazes de causar danos à saúde do trabalhador.
9.1.5.1 Consideram-se agentes físicos as diversas formas de energia a que possam estar expostos os trabalhadores, tais como: ruído, vibrações, pressões anormais, temperaturas extremas, radiações ionizantes, radiações não ionizantes, bem como o infrassom e o ultrassom.
9.1.5.2 Consideram-se agentes químicos as substâncias, compostos ou produtos que possam penetrar no organismo pela via respiratória, nas formas de poeiras, fumos, névoas, neblinas, gases ou vapores, ou que, pela natureza da atividade de exposição, possam ter contato ou ser absorvidos pelo organismo através da pele ou por ingestão.
9.1.5.3 Consideram-se agentes biológicos as bactérias, fungos, bacilos, parasitas, protozoários, vírus, entre outros.
Para afastar ou minimizar os riscos ou seu impacto sobre a saúde dos trabalhadores, as empresas deverão dedicar seus esforços. Dessa forma, por exemplo, em nosso escritório de advocacia não há riscos biológicos que nos exijam quaisquer medidas preventivas contra uma eventual contaminação, assim como ausente o agente vibração, nos leva a não adotar qualquer medida para reduzir o impacto desse risco físico.
De fato, se observarmos a nossa CLT, veremos que todos os artigos do Capítulo V – Da Segurança e Medicina do Trabalho trazem o ambiente laborativo e os riscos nele presentes como fatores preponderantes para a adoção de práticas gerenciais e para a responsabilização das empresas. Logo, haverá imposição de obrigatoriedade às empresas quando sua atividade econômica impuser ao trabalhador um risco específico, cabendo-lhe a prevenção e a cobertura destes riscos.
E o adoecimento por COVID-19, assim como o adoecimento por qualquer outra enfermidade viral, não é um risco ocupacional. Logo, qualquer medida a ser tomada pelas empresas para evitar o adoecimento dos trabalhadores por COVID-19 será uma mera liberalidade quando não houver uma norma proveniente da Secretaria do Trabalho (CLT, art. 182), por mais nobre e necessária que venha a se relevar alguma medida que vise a reduzir ou a prevenir os riscos de contaminação.
Por exemplo, o fornecimento de máscaras pelas empresas aos trabalhadores somente se tornou obrigatório a partir da promulgação da Lei 14.019/2020, em 02/07/2020, ainda que essa medida já estivesse indicada como extremamente necessária e adotada pela maioria esmagadora das empresas. Mas até aquela data, o fornecimento pelos empregadores era uma mera liberalidade.
Outro exemplo de obrigatoriedade e liberalidade: no momento em que escrevemos este artigo a compra de vacinas por parte das empresas não é uma obrigatoriedade, ainda que diversas empresas estejam buscando meios de operacionalizar essa aquisição, por mera e louvável liberalidade, a exemplo da Procter & Gamble, conforme notícia veiculada em 20/01/2021, quando seu gestor médico, alinhado às boas práticas, assim destacou[15]: “Se houver a disponibilidade de vacinas para empresas privadas e a possibilidade de importação, teremos interesse.” Entretanto, se alguma empresa optar por não comprar as vacinas quando isso se tornar possível, a ela não poderá ser imputada nenhuma responsabilização.
Toda empresa minimamente séria está preocupada com o quadro pandêmico atual e atuando no sentido de afastar ao máximo seus efeitos danosos. E é natural que várias empresas incluam estes cuidados no PCMSO – Programa de Controle Médico e Saúde Ocupacional, ainda que o COVID-19 não possa ser presumidamente considerada uma enfermidade laborativa ou um risco ocupacional.
Mas a inclusão de medidas gerenciais no PCMSO também é uma liberalidade do empregador, adequada à sua realidade e às suas possibilidades, justificada ante a preocupação inerente na preservação da saúde e da vida do trabalhador, individualmente falando, e da coletividade da empresa.
Neste sentido, é possível incluir exames de detecção nos exames médicos admissionais, periódicos ou estabelecer a obrigatoriedade do exame a qualquer tempo. Lembramos aqui que o exame de detecção não é invasivo, logo possível de ser imposto ao empregado.
Outra medida gerencial possível será o afastamento do trabalhador de suas atividades ante a mera suspeita do acometimento da doença, ou a adoção de qualquer medida que vise impedir a contaminação dos demais trabalhadores. Todas essas medidas decorrem da liberalidade das empresas, não havendo obrigatoriedade expressa.
Mas note-se: a empresa poderá adotar medidas que entenda cabíveis para preservar a saúde de cada trabalhador e a coletividade de seu quadro funcional, mas não poderá ser incluído no PCMSO a obrigatoriedade da vacinação ao empregado, consoante o exposto no primeiro tópico do artigo, sendo-lhe possível e devido instruir e orientar o empregado, esclarecendo a ele a importância da vacinação, como bem sugere a NR-32, no item abaixo copiado:
NR32 – Segurança e Saúde do Trabalho em Serviços de Saúde
32.2.4.17.5 O empregador deve assegurar que os trabalhadores sejam informados das vantagens e dos efeitos colaterais, assim como dos riscos a que estarão expostos por falta ou recusa de vacinação, devendo, nestes casos, guardar documento comprobatório e mantê-lo disponível à inspeção do trabalho.
Registrada a orientação, caso o trabalhador ainda mantenha seu posicionamento contrário à vacinação, a empresa seguirá tomando todos os demais cuidados para evitar a contaminação dos demais colaboradores.
Ora, considerando que o COVID-19 não se enquadra presumidamente como acidente do trabalho, considerando o conceito de risco ambiental do trabalho e, sobretudo, considerando a impossibilidade de obrigar o trabalhador tomar a vacina, é possível considerar a vacina como um EPI – Equipamento de Proteção Individual?
Parece-me óbvio que não. Além das razões acima, o EPI é um mecanismo de prevenção individual aos riscos ambientais do trabalho, assim como o EPC é um mecanismo de proteção coletiva dos mesmos riscos ambientais do trabalho.
Se observarmos o artigo 166 da CLT ali leremos que “A empresa é obrigada a fornecer aos empregados, gratuitamente, equipamento de proteção individual adequado ao risco…”. O risco, neste caso, é o risco ambiental do trabalho, que varia de empresa para empresa, de atividade para atividade e de local para local. Novamente: COVID-19 não é risco ocupacional.
Note-se também que aquela Lei 14.019/2020 que tornou obrigatório o fornecimento de máscaras pelo empregador não transformou as máscaras num EPI, isso por não se tratar o COVID-19 de um risco ocupacional.
Voltando ao exemplo de nosso escritório: não há obrigatoriedade de os advogados de nossa equipe usarem capacete em nossa sede, ainda que exista um certo risco de uma telha se soltar e atingir um deles; bem como nunca foi obrigatório aos advogados utilizarem máscaras quando visitarem presidiários, num ambiente com alta incidência de tuberculose (ainda que isso se revele uma medida preventiva).
Se observarmos o teor da NR 6 dedicada aos EPIs, veremos que seu texto também remete aos riscos ambientais do trabalho, aos riscos ocupacionais, a exemplo do item 6.3, que traz textualmente quando será obrigatório o fornecimento do EPI pelo empregador. Confira-se:
NR6 – Equipamento de Proteção Individual
6.3 – A empresa é obrigada a fornecer aos empregados, gratuitamente, EPI adequado ao risco, em perfeito estado de conservação e funcionamento, nas seguintes circunstâncias:
a) sempre que as medidas de ordem geral não ofereçam completa proteção contra os riscos de acidentes do trabalho ou de doenças profissionais e do trabalho;
b) enquanto as medidas de proteção coletiva estiverem sendo implantadas; e,
c) para atender a situações de emergência.
Novamente temos acima que o EPI será fornecido como medida contra os riscos ambientais do trabalho e COVID-19 não é um risco ambiental do trabalho, mas um evento pandêmico, cuja possibilidade de contaminação está disseminada e ilimitada. Por fim, se uma norma vir a tornar a vacinação um EPI, seu fornecimento será custeado pelas empresas, após a certificação de sua eficácia.
2.3 – E afinal, é possível demitir por justa causa o trabalhador que optar por não se vacinar?
Sem delongas para a nossa conclusão: NÃO É POSSÍVEL, por várias razões legais e lógicas.
Vamos primeiro aos fundamentos legais.
A primeira delas tratada no primeiro tópico deste artigo é a natureza invasiva da vacinação e o direito do indivíduo que afastam peremptoriamente a possibilidade de punição ao trabalhador que se recusar à vacinação.
A segunda, também tratada no mesmo tópico, se pauta no artigo 22 do texto constitucional, onde se vê a competência privativa da União para legislar sobre normas gerais do trabalho. Confira-se novamente:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; (Grifamos).
Logo, ante a ausência atual de norma legal que autorize a justa causa em casos de recusa à vacinação, não terá amparo a empresa que assim proceder. Vale lembrar que a justa causa somente será possível nos casos expressos no artigo 482 da CLT, aqui transcrito:
CLT
Art. 482 – Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:
a) ato de improbidade;
b) incontinência de conduta ou mau procedimento;
c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço;
d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena;
e) desídia no desempenho das respectivas funções;
f) embriaguez habitual ou em serviço;
g) violação de segredo da empresa;
h) ato de indisciplina ou de insubordinação;
i) abandono de emprego;
j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;
k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;
l) prática constante de jogos de azar.
m) perda da habilitação ou dos requisitos estabelecidos em lei para o exercício da profissão, em decorrência de conduta dolosa do empregado. (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)
Note-se, portanto, que a recusa à vacinação não se encaixa em nenhuma das hipóteses acima. E sem previsão legal, não se pode promover o desligamento por justa causa.
A propósito, temos lido artigos autorizando o desligamento por justa causa após sucessivas advertências ao empregado da necessidade de se vacinar, o que para nós não encontra amparo nas normas vigentes e nem na lógica. Vejamos:
As advertências são pertinentes quando o trabalhador transgride alguma obrigatoriedade não observada, incorrendo na falta grave prevista no artigo 493 da CLT, aqui copiado:
Art. 493 – Constitui falta grave a prática de qualquer dos fatos a que se refere o art. 482, quando por sua repetição ou natureza representem séria violação dos deveres e obrigações do empregado.
Em alguns casos, sugere-se que o empregador oportunize ao empregado a correção de sua conduta antes do desligamento por justa causa, sendo-lhe pertinente aplicar novas advertências (há aqueles que defendem que seria prudente o empregador aplicar duas advertências, pelo menos, antes de se decidir pelo desligamento por justa causa).
No caso da recusa à vacinação, a referência feita no artigo 493 acima copiado ao artigo 482 recairia para os atos de indisciplina ou insubordinação previstos em sua alínea h. Entretanto, não havendo norma legal que obrigue o trabalhador a se submeter à vacinação, e não sendo a vacinação passível de ser considerada um EPI, não há que se falar em insubordinação, o que afasta a possibilidade da justa causa. Note-se a diferença: se o trabalhador se recusar a usar a máscara, poderá ele sofrer a rescisão por justa causa, uma vez que há uma Lei Ordinária estabelecendo essa obrigatoriedade. Mas para a vacinação, não há norma equivalente.
E convenhamos, seria uma situação ridícula a obrigatoriedade do empregador aplicar advertências sucessivas ao empregado que optar por não se vacinar antes de concretizar o desligamento. Imagine a cena: você orienta o trabalhador à vacinação, e ante sua recusa, você o adverte. No dia seguinte, ao ver que aquele trabalhador ainda não tomou a vacina, você volta a adverti-lo e, num dia posterior à segunda advertência, mantendo o trabalhador seu posicionamento, você aplica a justa causa. Ora, a não vacinação não é um ato reiterado de insubordinação, mas uma decisão continuada, o que tornaria desnecessária as múltiplas advertências para se chegar ao desligamento! Fosse possível a rescisão por justa causa pela não vacinação, seria desnecessária essa sucessão de advertências.
2.4 – Mas, não sendo possível o desligamento por justa causa, quais as medidas gerenciais possíveis à empresa no caso do trabalhador que se recusar à vacinação?
O primeiro ponto a ser considerado é a necessidade de se analisar cada caso, para se concluir sobre a possibilidade daquele trabalhador realmente oferecer risco de contaminação aos demais trabalhadores. Existirão casos em que o trabalhador não terá contatos com os colegas e existirão casos em que será impossível evitar uma aproximação passível de gerar alguma contaminação.
Vejamos ainda a hipótese de um único trabalhador optar por não se vacinar. Neste caso, estando todos os demais colegas vacinados, a presença de um trabalhador não vacinado pode ser considerada inofensiva aos demais que estariam protegidos. Ora, o desligamento neste caso hipotético, nos parece desmedida.
Ademais, tal qual ocorre hoje, as empresas podem buscar melhorias procedimentais internas que minimizem o contágio de seus empregados, o que inclui testes de detecção ao trabalhador que se recuse à vacinação ou sua alocação noutra área (se isso for possível e conveniente à empresa, mas jamais uma obrigação).
Poderá ainda a empresa submeter o empregado a algumas obrigatoriedades internas, como, por exemplo, não permitir que ele frequente o refeitório ou as áreas comuns em determinados horários, ou qualquer outra medida possível que vise reduzir os contatos deste trabalhador com os demais empregados, como já ocorre com os fumantes, por exemplo.
Vamos lembrar aqui que estas medidas restritivas foram lembradas pelo STF em sua decisão recente, indicando que poderiam ser aplicadas pelo poder público contra aqueles que se decidirem contrários à vacinação.
Por fim, se a empresa entender ser impossível gerenciar a situação de um determinado trabalhador que optar por não se vacinar mesmo após a adoção de outras medidas preventivas, ou quando for impossível afastar o risco de contaminação dos demais trabalhadores, entendemos possível haver o desligamento sem justa causa, sob a justificativa de que os interesses das partes contratantes (empresa e empregado) estão em completo desalinho e que o posicionamento individual do trabalhador é incompatível com as possibilidades gerenciais ou a filosofia da empresa em privilegiar a saúde e segurança da coletividade.
Entendemos e esperamos que este desligamento sem justa causa não seja interpretado como medida discriminatória pelo judiciário trabalhista, mas recomendamos que a empresa, em sua defesa, demonstre as medidas tomadas e demonstre a impossibilidade de se evitar a contaminação dos demais trabalhadores naquele caso específico (seremos contrários ao desligamento generalizado apenas pela recusa do trabalhador ser vacinado, sem ter a empresa analisado cada caso ou tomado algumas medidas gerenciais para evitar a contaminação, o que poderia ser considerado uma medida discriminatória).
CONCLUSÃO
Talvez premidos pela inquietante situação que estamos vivenciando há mais de um ano, temos visto vários posicionamentos indicando condutas que não são condizentes com os textos normativos vigentes e que já são suficientes para a solução dos problemas emergentes. E algumas medidas sugeridas, inclusive, contrariam as normas vigentes, ainda que o apelo da proteção geral seja sempre aventado. Outro aspecto verificado nos diversos artigos e notícias: a confusão entre o que seria adequado e o que seria obrigatório. É adequado que todos se vacinem? Parece-nos que sim, mas isso não pode ser obrigatório. É adequado que as empresas adotem práticas prevencionistas? Óbvio que sim, mas a obrigatoriedade também deve estar prevista em norma proferida pelo agente, ente ou órgão competente.
Por tais razões, ante a lógica e as normas vigentes, nossa leitura é a de que:
- a vacinação do empregado não pode ser compulsória;
- a vacina não é um EPI;
- a vacinação não pode ser incluída no PCMSO; e
- a recusa do trabalhador à vacinação não pode resultar em seu desligamento por justa causa.
[1] Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1>. Acesso em: 08 fev. 2021
[2] Disponível em: <https://migalhas.uol.com.br/quentes/330685/lei-da-vacina-obrigatoria-e-uma-lei-morta—disse-rui-barbosa-contra-vacina-de-doenca-mortal-do-seculo-xx>. Acesso em: 08 fev. 2021
[3] Idem.
[4] Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/revolta-da-vacina-2#:~:text=Em%20meados%20de%201904%2C%20chegava,ser%20inoculado%20com%20esse%20l%C3%ADquido.>. Acesso em: 08 fev. 2021
[5] Idem.
[6] Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5909870>. Acesso em: 08 fev. 2021
[7] Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6033038>. Acesso em: 08 fev. 2021
[8] Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6034076>. Acesso em: 08 fev. 2021
[9] Disponível em: < http://www.revistafjn.com.br/revista/index.php/eciencia/article/view/885>. Acesso em 16 fev. 2021.
[10] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=448797&ori=1
[11] https://www.conjur.com.br/dl/gilmar-vetos-bolsonaro-mascaras.pdf
[12] Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6586vacinaobrigatoriedade.pdf>.
Acesso em 08 jan. 2021.
[13] International Labour Organization – List of Occupational Diseases (revised 2010): (…) 1.3.9. Diseases caused by other biological agents at work not mentioned in the preceding items where a direct link is established scientifi cally, or determined by methods appropriate to national conditions and practice, between the exposure to these biological agents arising from work activities and the disease(s) contracted by the worker.
[14] Decreto 24.637/1934, art. 1º, §1º; Decreto-Lei 7.036-1944, art. 7º, parágrafo único e Lei 8.213/91, art. 20, §1º; d.
[15] In https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/especiais/coronavirus/2021/01/774300-empresas-avaliam-compra-de-vacinas-reforcam-exames-e-mantem-home-office.html